quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

24 de fevereiro de 1972: Incêndio do edifício Andraus


Publicado na Folha de S.Paulo, sexta-feira, 25 de fevereiro de 1972

O esforço, a solidariedade, a coragem e a total mobilização de recursos empenhados numa gigantesca operação de salvamento impediram ontem que o maior incendio da historia de São Paulo - o do predio da Pirani, na avenida São João - se transformasse também numa de suas maiores tragedias.
E para isso tambem contribuiu a providencial circunstancia de o edificio ter no topo um heliporto (o primeiro desse tipo instalado em São Paulo), que tornou possivel o resgate, por helicoptero, de dezenas de pessoas que subiram ao ultimo andar para escapar das chamas.
A verdadeira ponte aerea de salvamento, formada por helicopteros de varios orgãos publicos e empresas privadas, permitiu o resgate de mais de 300 pessoas, segundo estimativa realizada na Secretaria da Segurança Publica. Até às 19 horas, os helicopteros tinham feito 60 pousos no topo do edificio incendiado.

O papel do vento

O incendio começou às 16h20, no terceiro andar do edificio, na seção de crediario da Pirani, que ocupa cinco dos 27 andares do predio. Em menos de 10 minutos o fogo já se propagara para os andares inferiores e, logo em seguida, mais lentamente, para os de cima.
A essa hora, soprava no centro da cidade um vento de 30 quilometros horarios (o normal em São Paulo é de 7 a 12 quilometros por hora), que contribuiu decisivamente para a rapidissima propagação do fogo.
Isoladas pelas chamas nos andares de baixo, muitas pessoas que estavam no predio (onde funcionam entre outras empresas a Shell, Petrobrás, Siemens, a Companhia Varejista de Seguros, a SUSEPE) subiram até o ultimo andar, antevendo a possibilidade de uma salvação pelo heliporto.
Outras, entretanto, ficaram presas dentro dos andares incendiados e, em desespero, saltaram para a morte. Duas tentaram usar uma corda, mas que só chegava a 15 metros do chão. Pularam dessa altura e morreram na calçada.

Os helicopteros

Por volta das 17 horas, quando já estavam no local praticamente todas as guarnições do Corpo de Bombeiros, surgiu o primeiro helicoptero: fez algumas evoluções em volta do predio, para reconhecimento da area e pousou às 17h15, decolando um minuto depois, com as primeiras pessoas resgatadas.
Logo vieram outros helicopteros - da FAB, do Palacio do Governo, da Prefeitura, da COMASP, do Banco do Estado e de firmas particulares - havendo ocasiões em que seis aparelhos sobrevoavam a area ao mesmo tempo. Os helicopteros recolhiam as vitimas e as levavam para heliportos improvisados, como a praça Princesa Isabel, o campo do Palmeiras e para o aeroporto de Congonhas ou Campo de Marte.
E, no topo do edificio, quase transformado numa fornalha, a ação de quatro homens de sangue-frio impediu que o panico fizesse mais vitimas: por iniciativa propria, eles assumiram a liderança das centenas de pessoas, fizeram-nas deitar-se para evitar asfixia pela fumaça e estabeleceram a prioridade para o embarque nos helicopteros. Primeiro as crianças, depois as mulheres e finalmente os homens, eles quatro por ultimo.


Rescaldo

Cerca das 21h30 o comandante do Corpo de Bombeiros anunciou que se iniciavam os trabalhos de rescaldo. Os bombeiros já estavam na marquise da sobreloja, onde encontraram mais dois cadavares -o que elevava o numero de mortos a cinco. Mas os bombeiros, entretanto, ainda se recusavam a fazer qualquer estimativa sobre o numero total de mortos, enquanto prosseguia o trabalho de resgate de pessoas que ainda estavam no topo do edificio.
Grupos de bombeiros, chegados de helicoptero, desembarcaram no topo e começaram a trabalhar de cima para baixo, enquanto seus companheiros faziam o resgate de baixo para cima.
Ainda se viam chamas em alguns andares, como o 9°, o 10°, o 13° e o 17°.
Cerca das 21h45 os bombeiros começaram a dirigir os jatos das mangueiras para o 4° andar, mas uma ameaça se apresentava: um dos pilotis do 5° andar estava rachado.
Um lamaçal espesso e escorregadio, formado por cinzas, cacos de vidro e detritos carbonizados, misturados à agua, corria numa grande extensão da Av. São João.
O governador Laudo Natel compareceu ao local do incendio e ali ficou cerca de dez minutos. Afirmou que o governo do Estado estava tomando todas as providencias para reduzir as proporções da tragedia. Fez um apelo ao povo para que desimpedisse as vizinhanças do predio e dos hospitais.

O dia mais tragico da cidade

O incêndio começou nos fundos do 3° andar do edificio onde funcionava a seção de crediario da Pirani.
João Batista Zicari Filho, um dos gerentes da loja tentou abafar as chamas com um dos três extintores que havia em cada andar do edificio, mas o seu esforço foi inutil. Rapidamente, as labaredas passaram para a seção de alfaiataria, no 2° andar, e para o salão de moveis, atingindo o estoque de botijões de gás e o armário de munição.
Enquanto os 500 funcionarios da Pirani, que ocupava cinco andares do edificio, começavam a sair pela porta da av. São João, outras duas mil pessoas começavam a viver a tragédia com as labaredas tomando os 24 andares restantes do edificio. Em 20 minutos, ele estava praticamente tomado pelo fogo e o vento forte elevava as chamas a mais de 300 metros de altura.
Meia hora após o início do incendio, o prefeito Figueiredo Ferraz chegou à av. São João.
- Fiquei traumatizado com o incendio -disse o prefeito.- Ele é maior que aquele ocorrido no predio Paulista, onde eu tinha escritorio na época. Na minha opinião, essa é a grande desvantagem da arquitetura moderna. Os predios antigos tinham alvenaria e bloqueavam qualquer incendio nos pavimentos. Os edificios de hoje, além da falta de escadas externas, facilita a ação do fogo, que penetra pelas laterais dos pavimentos, tomando um edificio em poucos minutos.
O prefeito Ferraz disse, ainda, que mobilizou ambulancias de todas as Secretarias da Prefeitura e das Administrações Regionais, os carros-pipas da SAEC e o unico helicoptero que estava funcionando. Aliás, foi o primeiro aparelho a pousar no heliporto do edificio Andraus para resgatar as vítimas, mais de 100, que conseguiram chegar até lá.
- O brasileiro não acredita em incendio, mas ele existe e existe e é devastador - disse ainda o prefeito que acompanhou de longe o trabalho dos bombeiros, que começaram atacando os dois predios em frente ao edificio Andraus, atingidos pelas labaredas.

SEM RESPOSTA

A multidão, que ocupou longa extensão da av. São João, Vieira de Carvalho, largo do Arouche e praça Julio Mesquita, presenciava o acontecimento. No 15° andar, onde funcionava o escritorio da Petrobrás, um vulto tomado pelas chamas, mais parecendo uma tocha humana, acenava desesperadamente para a multidão da rua. Mas foi um aceno sem resposta. O fogo foi tomando rapidamente o pavimento e o vulto foi caindo, sem vida, envolvido pelas labaredas.
No meio da rua, um policial do 3° Distrito recolhia uma carteira profissional encontrada no andar terreo da Pirani. Era do office-boy Edson Campiani, de 17 anos. As autoridades tentaram localiza-lo, mas uma informação apontava-o como uma das muitas vítimas que ficaram retidas no edificio bloqueado pelo fogo.
João Batista Zicari Filho, gerente da Pirani, informou ao delegado Paulo Boncrhistiano, titular do 3° Distrito, que possivelmente o incendio fora provocado por um curto-circuito geral, no 3° andar do edificio. João Batista acalmou as autoridades, informando que a maioria dos funcionarios da loja conseguira escapar, sem ferimentos. Essa informação, entretanto, não se confirmou, porque Neide Eugenio de Souza, que trabalhava no 2° andar, em prantos, dizia na rua que dezenas de colegas suas não conseguiram escapar do 5° andar, onde o incendio bloqueou os elevadores e as escadas.
- Eu tenho quase certeza de que a maioria do pessoal ficou lá dentro e muitos devem estar mortos agora. Eu consegui sair, porque estava no 2° andar.
Celso Braga estava no 15° andar, no escritorio da Petrobrás, onde trabalhava, quando começou o incendio. Ele correu para as escadas, tomadas por uma nuvem de fumaça e fortes chamas. Luisa, sua namorada, entrou em panico, mas como a maioria dos empregados da Petrobrás corria para as instalações sanitarias, os dois os seguiram e durante quase duas horas ficaram ali, suportando um calor intenso. Na saida do predio, na rua Pedro Americo, Celso Braga, com queimaduras na cabeça, peito e pernas, como Luisa contou o que foi o incendio:
- Foi a coisa mais horrivel que já vivi em minha vida. Pensei que não haveria salvação para ninguém. O fogo tomou tudo, o calor era insuportavel e vi um dos meus colegas ser inteiramente engolido pelas chamas.
Na praça da Republica com rua Pedro Américo, a confusão entre a multidão prejudicou o trabalho da Policia Militar, dos bombeiros e das equipes medicas que montaram varios postos de emergencia para atendimentos. A multidão invadia o cordão de isolamento e muitos afirmavam que estavam à procura de parentes que trabalhavam no edificio.

DESESPERO

Quando os soldados da PM e da Aeronautica começaram a empurrar a multidão, para facilitar a passagem das ambulancias com os feridos, um homem enlouqueceu e começou a gritar:
- Salvem a minha filha. Ela está no predio.
Era o mecanico Temerozio Soares Fernandes, de macacão azul, que provocava a mobilização dos policiais. Ninguém entendia o seu drama e com violencia ele foi arrastado para um carro da Radio Patrulha. Mais tarde, a verdade: Temerozio queria entrar no edificio em chamas para resgatar sua filha, Neide Soares, que estava presa no 13° andar.


ÁGUA

Além de executar manobras de rede de água da região do prédio incendiado, a superintendencia da SAEC enviou ao local dez carros tanques de nove mil litros cada um, cinco viaturas para o transporte de feridos, três ambulancias e interrompeu o fornecimento de agua a particulares na area central da cidade. Calcula-se o consumo de varios milhões de litros de agua no combate às chamas e a movimentação de todo o pessoal disponivel em serviço naquela autarquia.

Roberto Andraus, o construtor

O construtor e ex-proprietario do Edificio Andrauss, Roberto Andraus, vendera os tres ultimos andares do predio à Shell três meses atrás. Ontem seus novos proprietarios iriam inaugurar os escritorios, com uma grande festa no 25° andar.
Construido há dez anos atrás e com uma area de 1200 metros quadrados, o Edificio Andrauss possuia, em cada andar, alem dos escritorios, diversas copas e cozinhas todas com material de facil combustão (botijões de gás, geladeiras, etc.). Cerca de 2.000 funcionarios trabalhavam nos escritorios, que empregavam, em media 30 pessoas, cada um.
O fogo começou às 16h20 no 3° andar da Pirani, seção de crediario. No predio estavam escritorios da Petrobrás, Siemens, Companhia Varejista de Seguros (pertencente ao presidente do Palmeiras, Pachoal Giuliano, com 50 funcionarios), SUSEPE (Companhia de Seguros), Adrati e outros.


TESTEMUNHO

O sr. Roberto Andraus estava na Libero Badaro quando soube da catastrofe, seguindo imediatamente para o local.
"Êste era um dos predios mais lindos que ja vi", disse ele. "Sua estrutura é esplendida e a maior prova é ele estar de pé até agora. Graças ao heliporto, um dos mais modernos do mundo, estão salvando muita gente, pois caso contrario eles não teriam por onde sair. Mas assim mesmo vi diversas pessoas saltar, num espetaculo horrivel."
O construtor do predio incendiado disse ainda que o grande aquecimento poderia afetar as duas colunas mestras de sua estrutura e que se isso acontecesse, o predio viria abaixo.
"O predio foi totalmente construido em concreto. Se em vez desse material tivessemos usado a estrutura metalica, o edificio já teria ruido", explicou ele.

Fonte: http://almanaque.folha.uol.com.br

Um comentário:

  1. Um pouco tarde para fazer este comentário, mas como estamos chegando aos 50 anos dessa tragédia, vale uma pequena correção: A segunda foto é do incêndio do edificio Joelma (1974) e não do Andraus. A primeira e a terceira são do Andraus.

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