A concepção que o ocidente costuma atribuir ao Bushidô (literalmente, o caminho do guerreiro; no ocidente, livremente traduzido como código de honra do guerreiro samurai), é algo restrito apenas à conduta dos samurais. Como guerreiros, adestravam-se nas artes da esgrima, do arco e flecha, da equitação, nas diversas formas de luta corporal e nas extraordinárias habilidades dos ninjas – samurais extremamente ágeis e hábeis em camuflagem, simulação, espionagem e sabotagem – concomitantemente, primavam sua conduta pela lealdade, coragem, honra e respeito.
Para se compreender a essência do Bushidô, é preciso mergulhar nas suas origens ideológicas, mais do que ler e entender a obra Hagakure, de Tsunetomo Yamamoto, considerada a origem escrita do Bushidô, a partir da qual o mundo conheceu a idéia nipônica do caminho do guerreiro. Tsunetomo Yamamoto foi samurai em fins do século XVII do feudo de Saga, servindo ao daimyô Nabeshima, e depois, monge zen-budista num templo perto do monte Kinryu. Como monge, vários discípulos ouviam-lhe as sábias palavras da doutrina budista e samuraica, mas nunca escreveu nada. Um dos discípulos, Tsuramoto Tashiro, atentamente registrou as palavras do mestre compiladas em onze volumes, a que intitulou “Hagakure” (oculto nas folhas), da qual se extraiu a ética do Bushidô. Obra escrita em estilo clássico, de difícil compreensão para leigos, foi interpretada e condensada pelo professor Tatsuya Naramoto. Mesmo esta interpretação é ainda de difícil compreensão para não familiarizados com a cultura samuraica. Vale dizer, para quem não conhece as raízes ideológicas da cultura japonesa.
Mas o Bushidô não nasceu dos onze volumes do Hagakure. Pelo contrário. O Hagakure é que nasceu do Bushidô. Esta obra apenas deu existência escrita a algo que já existia na alma do japonês. As normas de conduta determinando a função e o comportamento em sociedade havia sido regulamentado pelo Estatuto Militar do século XVII, “Buke hatto”, promulgado no xogunato Tokugawa, mas o lado ético do guerreiro, a raiz invisível da ideologia que se formou ao longo de muitos séculos, era conhecida apenas por provérbios e sentenças, algumas escritas, esparsas, mas profundamente arraigadas na cultura do povo. Suas origens perdem-se no tempo mas possivelmente foram surgindo à medida que as ideologias chinesas eram aceitas e incorporadas à primitiva. Esta origem foi não apenas o nascedouro do Bushidô, mas também dos princípios ideológicos que moldaram as artes e a alma do povo japonês. Na sociedade japonesa feudal, a figura do guerreiro samurai – considerada a excelência de ideal de todo homem - foi quem mais visibilidade deu ao Bushidô.
Samurai é palavra derivada do verbo saburau, que significa apenas servir.
O prof Rizo Takeuchi, em sua obra “Bushi no Tôjô – entrada em cena dos samurais – , cita que já no Nihon shoki (crônicas do Japão), escrito em 720, existem referências à figura do saburai-bito, pessoa que serve, que acompanha o patrão.
No período Heian (794-1192), o saburai serve aos nobres no palácio, já então dentro de uma hierarquia que o situava acima de outros criados e servidores comuns, mas não exercia ainda funções militares.
O aprendizado do Bushidô consiste em educar e amalgamar ao espírito supremos valores éticos e morais. É assumi-los como conduta máxima irrefutável e insubstituível, superior à qualquer outra. É o preparo espiritual e psicológico para trocar, se preciso for, a essencialidade da vida por estes valores.
Para o espírito do Bushidô seus valores são superiores à vida. Esta é finita, os valores são eternos. Em outras palavras, o homem é finito mas não seu nome. Os valores espirituais superam os valores materiais. Somos parte efêmera de uma humanidade que se eterniza em valores imutáveis. A matéria é mutável, está em constante transformação, a vida é impermanente, transforma-se a todo instante, segundo a doutrina budista. Morrer é o destino de todo homem, mas deixar nome honrado é apenas para o homem superior. Lê-se em Confúcio, a relativização da morte face a outro valor superior: no caso, a perpetuação de uma nação.
“os requisitos do governo são três: abundância de alimento, suficiente poder militar e confiança do povo no governante”. Tsze-kung disse, “se for preciso eliminar um desses requisitos, qual deles sacrificaremos primeiro?” “o militar”, respondeu Confúcio. Tsze-kung repetiu a pergunta quanto ao segundo requisito a ser eliminado e a resposta foi que “o alimento; a morte está no destino do homem; mas se o povo não tem fé (em seus chefes) não haverá salvação (para o estado)”.
São consideradas fontes do Bushidô: o budismo que deu ao guerreiro o conforto psicológico na vida além da vida e lhe ensinou a perecibilidade da matéria; o xintoismo que lhe deu orgulho de seus antepassados e lhe ensinou o amor e o respeito a todo ser humano pela sua origem divina; o confucionismo que lhe ensinou a ética social. (vide “a alma do povo japonês: conseqüência no ideário do guerreiro”); do zen-budismo o guerreiro aprendeu que a perfeição está no fazer, está na ação; que o melhor adestramento para sua arte consiste em esvaziar a mente para que o inconsciente o conduza ao caminho da perfeição.(vide: “a alma do povo japonês: conseqüência nas artes“).
No zen-budismo há um conto que ilustra alguns dos princípios.
Bankei era um monge zen-budista famoso por sua sabedoria. Os retiros de treinamento espiritual que promovia recebia discípulos do Japão inteiro. Numa ocasião, monges flagraram um discípulo praticando furto. Levaram o fato ao conhecimento de Bankei, mas este nada disse e nenhuma providência tomou. O fato tornou a ocorrer e os monges, irados, exigiram que Bankei expulsasse o infrator. Caso não o fizesse, abandonariam o retiro. Disse o mestre: vocês podem abandonar o treinamento porque já sabem o que é certo e o errado, mas este monge não. Se eu não o acolher, que templo acolherá um monge errante? Eu ficarei com ele, até que desperte e vocês podem ir embora. O monge infrator chorou copiosamente despertando naquele instante.
A introdução da ética confucionista apenas confirmou a lealdade ao superior e o respeito à família, já praticadas no Japão e reforçando a virtude da sabedoria.
Este caldo cultural formou a excelência do homem japonês na figura do samurai. Guerreiro orgulhoso, ético, leal, habilidoso, corajoso, culto e destemido diante da morte. Assim como o autor intelectual do Hagakure, Miyamoto Musashi, considerado o mais hábil espadachim japonês de todos os tempos, após vencer 60 duelos resolveu ser monge, poeta e pintor de sumi-ê. O cultivo do intelecto faz parte do ideal budista, cujo ápice é alcançado pelo estado de iluminação, atingido por Buda. Segundo essa doutrina, a salvação só se dá pela sabedoria, pela perfeita compreensão dos ensinamentos.
Para o samurai, o tripé ideológico que sustenta o Bushidô é chi (sabedoria), jin (benevolência) e yu (coragem). Para o Bushidô, o guerreiro deve dominar a arte da esgrima, do arco e flecha, jujutsu, equitação, lança, tática e estratégia militar, caligrafia, literatura, aí compreendidas as diversas formas de poesia, ética e história. A aritmética era indispensável apenas para os estratagemas militares, pois o samurai não se envolvia nas relações com o dinheiro, considerada indigna de um guerreiro, e deixava a aritmética monetária para cabeças menos privilegiadas. Sabia ser o dinheiro o sustentáculo de uma guerra, mas não o elevava ao grau de virtude. A poupança era conseqüência da frugalidade. Para os adeptos do Bushidô não se podia pagar em ouro ou prata os serviços de um sacerdote ou de um professor. Não que não valessem. Mas porque eram inestimáveis. Na moderna Economia paga-se “por serviços cujos resultados sejam definidos, tangíveis e mensuráveis, enquanto que o melhor serviço feito em educação – notadamente, no desenvolvimento da alma (e isso inclui os serviços de um pastor), não é definido, tangível ou mensurável. Sendo imensurável, o dinheiro, a medida ostensiva de valor, é de uso inadequado”, explica Inazo Nitobe.
Objetivamente todo o mandamento do Bushidô era resumido nas palavras “Bun-bu-ryodo” (o caminho do pincel e da espada), ou seja, conhecimento mais habilidade técnica, mandamento para o espírito, mente e corpo. Adestrar primeiramente o espírito, governo da mente e do corpo.
São considerados mandamentos éticos do Bushidô, segundo José Yamashiro: retidão ou justiça, giri (pronuncia-se guiri) , palavra japonesa que significa senso de justiça e dever, coragem, benevolência, polidez, veracidade e sinceridade, honra, dever e lealdade.
Segundo Mencius (Meng Tzu, filósofo chinês – 372 – 289 a. C.), benevolência é a mente do homem e a retidão ou honradez, seu caminho. “Quão lamentável”, exclama ele, “é negligenciar o caminho e não procurá-lo, perder a mente e não saber como procurá-la novamente!”.
A palavra de um samurai – bushi no ichigon – era garantia de veracidade. O juramento ou o compromisso escrito era considerado algo abaixo da sua palavra, portanto, desonroso e indigno.
Durante mais de um milênio com predominância dos sete séculos que durou o governo dos xoguns, os samurais foram considerados a elite intelectual, política e social do Japão antigo. Com a Reforma Meiji de 1868 foi extinta a classe dos samurais, mas tão longo reinado da ideologia criou raízes na alma deste povo que permanecem vivas hoje e possivelmente ainda por muito tempo. O “Bushidô”, como intitula originariamente seu livro Inazo Nitobe, é “a alma do Japão”. (no Brasil lançado como “Bushidô – alma de samurai”).
Referências:
História dos samurais – José Yamashiro – 2ª ed – ed Aliança Cultural Brasil-Japão – Masao Ohno
Will Durant – História da Civilização – Nossa herança oriental – vol II – Cia Editora. Nacional – ed 1942
Inazo Nitobe – bushidô – alma de samurai
Para saber mais: O crisântemo e a espada – Ruth Benedict – editora Perspectiva
José Yamashiro – A História dos Samurais