terça-feira, 7 de setembro de 2010

Doguinho, uma história verídica de amor canino


Autor deconhecido

Não sei porque lembrei-me dele hoje. Era um cão sem raça, aqui entendida como linhagem. Porque a outra, que caracteriza os destemidos, essa ele a tinha. E muita! Vira-lata, muito simpático, pequenino, de pelo curto e originalmente branco - agora encardido de tanta terra vermelha - cativava de imediato a todos que dele se aproximavam, todo charmoso, o rabinho varrendo no ar toda sua alegria.

Ficou freguês da casa porque, um dia, meu filho fez-lhe um agrado na rua e, sem se fazer de rogado, DOGUINHO, assim batizado por nós, passou de repente a fazer parte de nossa vida.

Independente, boêmio e conquistador, aparecia e desaparecia a intervalos ditados por sua vontade. Era imprevisível. Sempre bem-humorado, era recebido com carinho e alegria. Vez por outra ficava conosco por dois ou três dias, para alegria geral, inclusive de um belo pastor alemão capa preta que tínhamos e com o qual DOGUINHO se dava maravilhosamente bem.

Perto de nossa casa morava uma família francesa, que tinha uma cadela toda faceira, e que andava sempre bem limpinha e perfumada. Uma autêntica ''dama'' canina, paparicada pelos donos e, de quebra, v i r g e m.!!!!

Um belo dia, em seu primeiro cio, a cadelinha amanheceu taciturna, encolhida num canto, olhar triste e distante. Chamaram o veterinário mais badalado da cidade, que só atendia a domicilio e só aceitava chamados para tratar de cães ''nobres'', como a cadelinha da família francesa, ela própria também de pedigree francês.

Pelo que soubemos, de nada adiantou a medicação prescrita pelo veterinário famoso. A tristeza da pobrezinha era profunda e seus donos não escondiam sua preocupação.

DOGUINHO, por seu turno, também estava tristonho. Deu pra notar logo que ele surgiu numa de suas inesperadas aparições. Então, de repente, o segredo dessa tristeza que martirizava os dois foi revelado: a cadelinha francesa, com toda sua nobreza, estava morrendo de amores pelo DOGUINHO. Imagine só, uma ''grande damme'' apaixonada por um ''clochard''. Só em livros, na vida real isso não existe! A paixão dos dois não teve conseqüências imediatas. Passado o ''cio'' tudo voltou ao normal. Pelo menos era o que todos pensavam.

''Foi só um susto'', disse o dono francês da cadelinha, com seu sotaque carregado.''Agora está tudo bem'', completou.

DOGUINHO havia sumido de novo. Dessa vez por quase três semanas.

Certa noite, ao chegar em casa, deparei-me com ele deitado, todo encolhido, na soleira da porta. Quando toquei nele, de leve, tentando acariciá-lo, em vez de manifestar a alegria de sempre, DOGUINHO soltou um gemido de dor tão profundo que me gelou a alma.

Estava doente, e muito. Todo arrebentado. Talvez vítima de um atropelamento, comentei com meu filho. Com muito cuidado, conseguimos colocá-lo no carro e saímos rápido em busca de socorro.

O veterinário que nos atendeu foi taxativo: ''está muito mal, hemorragia interna!''. Mesmo assim, medicou-o, aplicou injeções, prescreveu outros medicamentos e recomendou mil cuidados.

De volta à casa, passamos a noite toda cuidando dele, que resistia bravamente. Ao amanhecer já não gemia tanto e parecia sofrer menos. Foi quando nos dirigiu aquele olhar... Santo Deus, quanta amargura! Parecia que sofria mais por estar confinado num quarto do que pelas conseqüências de seu atropelamento.

Meu filho e eu trocamos um olhar de cumplicidade e eu lhe disse: ''Vamos deixá-lo ir. Acho que é isso que ele quer. Se tiver que morrer, que seja na rua, onde sempre viveu, independente e livre''.

Assim procedemos. Logo que viu a porta aberta, DOGUINHO levantou-se com dificuldade e foi embora, lentamente, mas com os olhos brilhando de contentamento. Ficamos com sentimentos mistos, mas com a certeza de que havíamos feito a coisa certa.

Não o vimos por mais de um mês. Achamos que tinha morrido. Nossa tristeza foi grande e a repartimos com os donos da cadelinha francesa que também manifestaram sentir pena pelo triste destino do cãozinho, tão querido de todos.

Um belo dia - Que surpresa! DOGUINHO reapareceu, totalmente curado, charmoso como sempre. Alegria geral! Nessa ocasião os franceses estavam se preparando para regressar ao seu país de origem. E ao saberem do reaparecimento do DOGUINHO resolveram adotá-lo para curar de vez a tristeza da ''grande damme'' e decidiram levá-lo, — imaginem — para Paris...

Não sei se ele aceitou a nova vida de 'MONSIEUR DOGUIN', se passou a viver como nobre ou se a ''grande damme'' acabou se transformando em um ''clochard'' como seu amado sempre fora. Jamais saberei.

Mas tenho certeza de que DOGUINHO voltou à boêmia, à vida feliz, livre e independente que sempre vivera.
Só que, agora, não mais nos cerrados de terra vermelha e poeirenta de Brasília mas nas alamedas verdejantes do Bois de Boulogne.

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