sábado, 11 de setembro de 2010

4 VERSÕES DIFERENTES DE "CHAPEUZINHO VERMELHO"


Renovação do Maravilhoso

Estilo romântico (à maneira de Franklin de Oliveira) – Millôr 1949

Sentindo em seu sangue o tumultuar ardente dos ginetes impávidos de sua configuração cósmica, estrelas maduras de sua juventude, Chapeuzinho Vermelho tentava atravessar a Floresta agreste onde uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa, onde as árvores eram ao mesmo tempo como frutos de amor da terra pelo vento e pelo sol e uma obstinação da natureza contra o homem, quando viu surgir à sua frente a figura contrastante e terrificadora do Lobo Mau, que lhe perguntou aonde se dirigia.

-"Ah"- disse o Lobo – "que maravilha és e que maravilha que fosses minha namorada. Porque o maravilhoso, quando se encontra o Ser que se Ama, a Enamorada distante, é os dois ficarem calados, nada dizendo, ela sabendo que naquele silêncio está sendo mais amada que nunca, tornando-se mais linda em seu quieto silêncio."

E, assim, envolvida pelo som dessa voz, Chapeuzinho Vermelho prossegue seu caminho, chega à casa da sua avó e, na surpresa de encontrá-la acordada, pergunta por quê. Ah, o porquê da insônia. Neurastenia Noturna. Agonia do Cérebro. "Minha avó"- pergunta Chapeuzinho – "por que tens orelhas tão grandes?" "Ah, filha, isso é para ouvir o ouvido e o som do teu som. Quando tiveres ido há muito, inda te sentirei junto a mim." "Vó, e por que esses olhos tão grandes?" "Ah, filha, é para a contemplação da Beleza, a Beleza de todos os dias, a luz das estrelas que vivemos perdendo."

-"Vó, e para que esses dentes tão grandes?"- "Ah, filha, acredito no Amor, pássaros, ondas, céus, palavras claras e também confusas. Acredito que o amor é um manjar do céu, que a criatura amada é o único alimento do coração, e por isso tenho esses dentes tão grandes: porque és o meu amor."

Quando ele e ela se tornaram uma só pessoa, então a vida começou e não haverá mais Fim, pois não pode haver Fim quando duas pessoas estão juntas, uma dentro da outra.



Tragédia de Paixão

Estilo telúrico (à maneira de Raquel de Queiroz) – Millôr 1949

O caso triste deu-se por estas bandas - ela magrinha e jeitosa ia passando pelo caminho do Quixadá levando no braço a cesta de baba-de-moça e de pudim de coco que a mãe fizera para a vó quando o tipo forte, grosso, simpático, saltou dos matos e interrompeu-a: "Onde é que tu vai com esse chapeuzinho tão vermelhinho na cabeça?" Ela ficou de medo rija, mas ao mesmo tempo achava o moço simpático, disse que ia ali mesmo levar uns negócios pra vó, ele perguntou aonde, disse se não podia acompanhá-la. Ela se fez de rogada, abanou que não.

Mas o tipo era sabido, conhecia a redondeza, atravessou a ribeira, pulou o cercado, arrodeou o açude, afastou os porcos na engorda por trás da casa do Chico Vira-Mão e foi desembestar suarento e resfolegante na casa da avó da Cabecinha Encarnada. Só teve mesmo tempo de matar a velha, enterrar embaixo da banheira e se deitar na cama que já as batidas fracas na porta diziam que a mocinha estava ali. Diz que ela entrou, botou os doces em cima do baú e foi dar uma palavra com a vó que há muito não via. Estranhou e perguntou: "Vovó, por que a senhora está com orelhas tão grandes?" A vó respondeu que estava ficando velha, que orelha de gente velha vai mesmo crescendo, depois explicou a ela que seu nariz estava assim porque ela tinha pegado um golpe de ar e, na hora em que a mocinha perguntou por que aqueles dentões tão enormes, o tipão já não deixou nem ela ter tempo de falar mais nada, tapou-lhe a boca, puxou uma peixeira e tome facada.

Foi preso, está esperando condenação. Aos jornalistas diz que não se arrepende, que tinha amor, depois teve o amor transformado em ódio e que prefere ver ela morta que com cara de nojo pra ele. Diz que prisão por prisão prefere mesmo essa, que homem foi feito pra sofrer duro mas não para penar de mulher viva.



O Espírito Sobrenadará

Estilo metafísico (à maneira de Austregésilo de Athayde) – Millôr 1949

Tenho que Chapeuzinho Vermelho, essa pobre moça vítima das insídias do Lobo Mau, não está sozinha nesta Batalha de Eras. Envolvida no ardil torpe de um ser altamente experimentado nas artimanhas de nosso tempo ela se deixou sucumbir. Não deduzamos, porém, loucamente, que tudo esteja perdido.

A floresta em que Chapeuzinho se perdeu é o próprio símbolo dos desvios e perigos a que estamos sujeitos neste mundo sem Fé. E quando ela pergunta e pede informações em sua inocência fundamental, quem a guia e orienta é justamente um ser da pior espécie. Já a própria primariedade do ardil empregado indica a pureza da jovem. Outra, de maiores recursos imorais, experiente na lógica prática da vida, teria compreendido e resistido ou se perdido para todo sempre.

Conheci Chapeuzinho Vermelho quando me dirigia para a Missão Livingstoniana, logo depois de terminada a Grande Guerra. Sei por isso que não pensou, dada a pureza que lhe reconheci, nas diferenças primaciais entre sua Avó e o Lobo. Isso a salva e aniquila o valor do Mal. E bastaria que dessa catástrofe sobrasse a glória de sua inocência, para que qualquer homem de Bem pudesse continuar a crer na sobrevivência do amor. Pois está no plano da natureza que a alma é mais importante que o corpo, e, salva a parte mais importante da criatura humana em Chapeuzinho, está salva com ela a humanidade.



O que tivesse de ser, somente sendo

Estilo anfigúrico (à maneira de Guimarães Rosa) – Millôr 1998

No contravisto do caminho, Capuchinho Purpúreo ia à frente, a com légua de andada, no desmedo da floresta.

O bornoz estornava demasias de gula, carnalidades, guleimas, bebeiras e pitanças pra boca de pessoa, a vó, sem nem aviso antes. Sente o muito bicho retardar, ponderado. Hora de poder água beber, esses escondidos. Por ali sucuri geme. O céu embola no brilho de estrelas, cabeça de Chapeuzinho vai que esbarra nelas. É um escurão que peia e pega. Dali vindo, um senhor Lobo, na frente da boca todos os demais dentes de caso quisesse.

- Se é, sê, linda menina, que parece dispor de muita virtude na pressa desse aonde.

- Nada, nada vezes – disse, e pensou Capuchinho, deve ser o Incapacitado, no irreconhecível do demônio. E nem indagou nonada, mas Lobo no após, santificado de maldade, ensoou que só estava na busca do significante de sua indagação. Consoante falou soez, amiudado, com propósito de voz.

Capuchinho arrenegou e, suspendida no fôlego, atravessou o Pardo e o Acari, pela Vereda do Alegre, no célere do pressentido. O lobo, coração quejando nas esquerdas foi pelo Piratinga, que é fundo, mas subindo beira desse, se passava. Chegou em inhantes, não muitos, com tempo de assinalar à vó outros caminhos, só você entende, compadre Quelemém, e se botou, assim deitado coberto, na espera que o que viesse vinha – o que não é de Deus, é estado do Demônio.

Capuchinho foi chegando, mostrou papanças e pitanças, salivas de goelas, bocas e queixadas, e daí deu-se ver na vó sinais discordes.

- A ser, avó querida, no desarranjo da forma, sem falar feieza, suas orelhas desmandam.

O velho lobo, no entendido da hora disse que na velhice os sons se vão-se e a orelha sai em busca, o nariz dá no mesmo de comprido tentando tragar cheiro esfugido. E que os dentes vão crescendo pro Vups, que ele deu logo na garganta da carótida salutar da carne doce doçura.

E pois, pelos entretantos, dito Zé Bebelo, provedor da estúrdia forca de enforcar no morrote de São Simão do Bá, se apareceu, ele mesmo em sua pessoa, de laço e baraço devido restante enforcamento. Capuchinho, agora pois, no choro. Nem todo mundo carece, mas tem os que. No mais, nada. O que termina acaba.

Viver é muito perigoso, compadre meu Quelemém.

Por Milor Fernandes.

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