domingo, 28 de junho de 2009

A última bacalhoada


Ele já foi chamado de “o peixe que mudou o mundo”, mas uma descrição mais precisa hoje seria “o peixe que está indo pro saco”.

OK, peço desculpas pela expressão engraçadinha, mesmo porque a atual situação do pobre Gadus morhua, o tradicional bacalhau, não é nada divertida. Depois de alimentar (literalmente) a expansão viking, as navegações portuguesas e a colonização dos EUA, o peixe foi pescado de forma tão intensa nas últimas décadas que sua população entrou em colapso em vários lugares. E, conforme mostra um estudo recente, até a dinâmica evolutiva da espécie está sendo afetada – com mais um colapso pesqueiro como o subproduto provável do fenômeno.

A má notícia está num artigo da revista científica de acesso livre “PLoS One”. Os autores são Einar Árnason e Ubaldo Hernandez, da Universidade da Islândia, e Kristján Kristinsson, do Instituto de Pesquisas Marinhas da Islândia. (Como se vê, a Islândia é um dos poucos lugares do mundo, se não o único, onde ainda se fazem nomes vikings como antigamente). Já se sabe há tempos que a pesca intensiva é capaz de fazer as vezes de uma versão turbinada da seleção natural. Afinal, os pescadores sempre tentam capturar os peixes maiores, o que faz com que as populações mais visadas passem a ser dominadas por nanicos precoces. Isso porque os peixes que conseguem chegar à idade reprodutiva mais cedo e com menor tamanho têm mais chances de sobreviver, de forma que só acabam sobrando os pequeninos. Mas o processo pode demorar décadas para se completar.

Árnason, Hernandez e Kristinsson foram além dessa constatação: conseguiram flagrar diferenças genéticas importantes na população de bacalhau, algumas das quais estavam sendo claramente favorecidas pela pesca predatória. Estamos falando de variantes do gene Pan I, que permitem que diferentes populações de bacalhau se adaptem à vida no raso ou no fundo.

Lembrando muito rapidamente: quase todos os animais carregam duas cópias de cada gene, um oriundo do pai e outro da mãe do bicho (ou da pessoa) em questão. E, além disso, cada cópia pode vir em dois ou mais “sabores” ou variantes, os chamados alelos. No caso dos bacalhaus e do gene Pan I, os peixes podem carregar duas cópias do alelo A (são, portanto, AA), o que significa que passam a maior parte do tempo em águas rasas, ou duas cópias do alelo B (são os BB), o que os leva a viver quase sempre em águas profundas. Cruzamentos entre essas duas formas, os AB, são possíveis, mas os peixes “mestiços” tendem a morar em profundidades compatíveis com as de seus ancestrais AA.

Vida no raso
Acontece, porém, que para os pescadores vale muito mais a pena capturar peixes em águas rasas do que em águas profundas, mesmo com a tecnologia atual. Por isso, as áreas rasas do Atlântico perto da Islândia correspondem à grande maioria da cota de 160 mil toneladas de bacalhau capturadas em 2007, por exemplo. E o resultado disso é inconfundível: de ano a ano, a proporção de indivíduos que são classificados geneticamente como AA e, em menor grau, como AB está diminuindo.

Parece algo simples, eu sei, mas na verdade se trata de uma mudança evolutiva considerável. Na prática – e sem nem pensar muito a respeito disso –, os pescadores islandeses estão eliminando uma fatia da diversidade genética do bacalhau, de maneira que não haverá mais populações de água rasa da espécie se a coisa continuar do jeito que está. É, é exatamente o que você está pensando: além de extinguir os bacalhaus “rasos”, os pescadores vão extinguir a si mesmos no processo, se nada for feito.

O trio de pesquisadores sugere que se estabeleça urgentemente um sistema de áreas protegidas em que não se pode pescar – as chamadas zonas de “no-take” – em vários locais da costa da Islândia, como forma de tentar evitar o pior. Espero que eles consigam ser uma voz da razão em meio às pressões favoráveis à pesca predatória. De qualquer maneira, a análise deles é um dos testemunhos mais eloqüentes em favor do estudo teórico e prático da seleção natural. Ignorar a teoria da evolução é ruim para o bolso, para o estômago – e, em última instância, para o legado que a nossa espécie quer deixar na Terra.

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