Tenho sempre falado do trabalho do diretor Hélio Ishii. Assim como de outros diretores de origem japonesa que, no Brasil, procuram resgatar a história da comunidade brasileira através de audiovisuais. Não são poucos os registros da história de japoneses e seus descendentes no Brasil. Mas, também, são muitas histórias que passam despercebidas. Em sua busca por imagens que contem a vida dos nipo-brasileiros, Hélio descobriu o Ypê Nakashima, um japonês que largou uma promissora carreira de chargista no Japão para experimentar a liberdade de viver num país diferente. Liberdade esta que poucos migrantes sentem fora de sua pátria. A história deste sonhador que produziu o primeiro longa-metragem de animação colorido do Brasil é contada no documentário Ypê Nakashima, novo trabalho de Hélio Ishii.
Ypê Nakashima nasceu em Oita, no ano de 1926 e teve uma infância tranquila, apesar da sanha imperialista do governo japonês da época. Seus problemas começaram quando enfrentou o pai ao optar por estudar Belas Artes, algo que não era bem visto fora da aristocracia. Pouco depois de iniciar seus estudos, Ypê foi convocado pelo exército e enviado a Nagasaki, onde estava no dia fatídico em que a segunda bomba nuclear da história foi despejada sobre o Japão. Com o fim da guerra, Ypê prosseguiu os estudos e, em seguida, iniciou sua carreira como chargista profissional em veículos importantes de Kyoto e, em seguida, Tóquio. Era um homem arrojado, moderno e muito bem casado com Emiko, com quem teve três filhos. Itsuo é o único que sobreviveu e é ele e sua família que contam a história do patriarca no filme de Hélio Ishii.
Sala de uma casa de classe média baixa. Três mulheres, duas delas bem jovens, e um homem folheam um antigo álbum de fotografia. Eles tecem comentários, como que ajudados pelas imagens a resgatar fatos sobre os quais não descorriam há muito tempo. Fade out. Outra cena semelhante... Memórias desconectadas, lembranças de pequenos episódios da vida cotidiana com um homem que não está mais entre eles. É assim que Ishii começa seu documentário sobre Ypê Nakashima que, morto aos 47 anos, deixou uma pequena obra e muitas lembranças esparsas.
No documentário, o grande narrador é Itsuo. Como um fiel secretário que se encarregou de guardar as anotações e histórias de seu mestre, o filho único de Ypê vai desvelando sua admiração e paixão pela história do pai. Ele conta histórias saborosas, algumas vezes como se não fizesse parte delas e fosse apenas uma testemunha, outras como o participante ativo que foi. Já sua família, pela pouca convivência com o patriarca, representa as lembranças tênues, soltas, características de histórias que vão estão se perdendo no fluxo do tempo. Numa metáfora que representa a assimilação dos migrantes, Itsuo - o nissei, o filho do imigrante - é a voz que viveu a experiência dos que atravessaram as fronteiras; suas filhas e mulher, são a terceira geração, aquela que está muito mais conectada à realidade do país onde nasceu do que ao passado migratório da família. Uma ausência complementa a metáfora: dona Emiko, como muitas senhoras de sua geração, prefere não falar sobre uma história que poucos conhecem melhor que ela. A câmera chega a sua casa, mas não tem o privilégio de conhecer sua versão dos fatos.
Ishii segue contando a história de Ypê até o momento em que ele realiza Piconzé, sua obra-maior. O longa, lançado em 1972, tem um padrão de qualidade que não deixa a dever aos desenhos produzidos fora do Brasil à época. Itsuo, que trabalhou na produção do filme, revela bastidores do processo de produção e técnicas usadas pelo pai, que trabalhara praticamente sem recursos. E é em Piconzé que a história entra em sua parte mais dramática. Apesar de mostrar uma quantidade razoável de material histórico, o filme de Ishii não consegue mostrar muito sobre a produção da animação. Aí, se revela uma outra metáfora. Os negativos originais de Piconzé desapareceram. E outros materiais do filme estão deteriorados ao ponto de que não servem mais para contar sua história. É, mais uma vez, a memória da imigração sendo consumida pelo tempo. Pedaços que simplesmente se deslocam enquanto outros estão irremediavelmente danificados.
Ypê Nakashima, o filme, nos presta um grande serviço ao levantar a poeira sobre uma história de um imigrante sonhador e sua contribuição ao cinema. Mas, nos oferece algo ainda maior naquilo que não consegue nos mostrar. A obra diz a nós, migrantes como seu protagonista, a importância da memória e dos registros da nossa trajetória.
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Links
Ypê Nakashima
(dividido em capítulos)
http://videolog.uol.com.br/video.php?id=447281
Piconzé
(completo)
http://www.nucleovirgulino.com.br/ypenakashima/ype_piconze.htm
Créditos: http://www.overmundo.com.br/
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