Outro dia, jantando com duas colegas de meu departamento num restaurante perto da minha universidade em Osaka, eu perguntei se elas sabiam alguma coisa sobre os Burakumin. As duas me olharam, literalmente lívidas. “Onde você ouviu falar dessa gente?” Elas me perguntaram. Na conversa que se seguiu, eu aprendi um pouquinho mais sobre os Burakumin, e confirmei o que estudiosos japoneses e internacionais dizem sobre a atitude da maioria dos japoneses em relação aos Burakumin.
Minhas colegas, digo logo de vez, são ótimas pessoas, e ótimas professoras; as duas têm ampla experiência em países do exterior, e falam outras línguas além do japonês e do inglês. Em outras palavras, elas são pessoas educadas e viajadas. Mas, quando o assunto é Burakumin, a reação das duas, que não conseguiam nem sequer pronunciar a palavra em um tom normal de voz, é igual à da maioria dos japoneses.
Mas o que quer dizer Burakumin? Simplesmente, os Burakumin são os párias do Japão. Não párias no sentido de “parasitas.” Os Burakumin são párias no sentido de que eles são considerados ‘impuros,” “inferiores,” e não devem misturar-se à sociedade “normal.” Eu me lembro ter estudado que, na India de muitos anos atrás, uma classe semelhante existia—os “intocáveis,” chamados Dalits--e consistia das pessoas cuja classe não tinha lugar nos corpo da divindade, e portanto estavam “fora.” Os Burakumin do Japão são os exilados dentro de seu próprio país.
Mas quem são estas pessoas Burakumin? Têm alguma doença? Alguma marca física? Não. Os Burakumin—também chamados Eta – são étnica e culturalmente japoneses como todos os outros (pesquisadores calculam que há por volta de 3 milhões de Burakumin no Japão, mas este número é vago, porque muitos escondem sua origem). A única coisa que os marca é a discriminação, que ocorre diariamente, de várias formas, desde um escritório em que o empregado é demitido quando o chefe descobre que ele é Burakumin, ou o candidato ao emprego não é aceito, pela mesma razão, ou uma mensagem de email insultando a pessoa Burakumin, ou grafiti nas paredes das casas. Até pátio de escola não escapa, porque crianças se juntam para fazer troça com a criança Burakumin, fazendo sinais com quatro dedos, imitando animais andando no chão. Como foi que tudo isso começou? Como é possível que um país como o Japão, que a gente acha tão civilizado, tão avançado, ainda mantenha uma tradição bárbara como essa? Há versões diferentes sobre como tudo começou, e há já muitos livros, assim como artigos científicos sobre o assunto. [1] Eu vou dar aqui um breve relato.
Em um artigo chamado “An Inquiry Concerning the Origin, Development, and Present Situation of the Eta in Relation to the History of Social Classes in Japan”—“Uma pesquisa sobre a origem, o desenvolvimento e a situação presente dos Eta em relação à história das classes sociais no Japão”—Shigeaki Ninomiya diz que há três teorias principais sobre a origem dos Burakumin. Uma é que eles são descendentes dos aborígenes, dos povos primitivos do Japão, que foram dominados pelos que vieram posteriormente do continente. Outra teoria diz que os Burakumin são descendentes de imigrantes filipinos e coreanos. Finalmente, a última teoria é a que se chama a teoria “etori,” que vamos discutir com mais detalhe. (Ver Ninomiya em Transactions of the Asiatic Society of Japan 10, páginas 47 a 154).
Os japoneses, como todos os seres humanos, têm que comer. E, se nem só de pão vive o homem, nem só de peixe vive o homem tão pouco, e alguns gostam de comer carne. Sempre gostaram. Aqui no Japão, assim como aí no Brasil, alguém tinha que matar, limpar, preparar os animais para consumo. Os Burakumin assumiram esta tarefa, há muitos séculos atrás. Com o tempo, estas pessoas passaram a ser encarregadas também de trabalhar com os corpos das pessoas mortas, e com a preparação deles para os ritos funerários. Nesta fase, de acordo com alguns estudiosos, os Burakumin tinham uma função de importância dentro do sistema dos templos shintoístas especialmente porque só eles podiam preparar os cadáveres. No meio do século XVIII, Atsutane Hirata (1776-1842), o reformador do Shintoísmo, escreveu que os Burakumin eram inerentemente impuros e interiores, que deveriam ser separados do resto da sociedade, e que deveriam ser impediddos de entrar nos templos. Tal foi feito.
Com a entrada do Budismo no Japão no século VI D.C., a noção da poluição associada à morte já presente no Shintoísmo, mais a proibição do consumo de certos animais, provocou ainda mais a separação dos Burakumin. Eles passaram a ser mantidos em bairros ou vilas — Buraku (que significa “vila” em japonês) — e vistos como seres sujos e potencialmente poluidores. Em Kyoto, no ano de 1715, e em Tokyo, no ano de 1719, foram feitas pesquisas sobre as populações de Burakumin, consultando-se os registros de família. Desta pesquisa resultou uma lista das pessoas que pertenciam a esta classe.
Para se compreender a importância destes registros de família até hoje no Japão, basta lembrar dois fatores. O primeiro, tem que ver com o famoso e infame ex-presidente do Peru, Alberto Fujimori, que buscou guarida no Japão depois de causar perdas, danos e mortes no seu país de nascimento. Como o nome dele consta do registro da família Fujimori, e este registro está guardado em algum templo no Japão, Alberto Fujimori pôde fazer uso do fato de que, pra todos os efeitos, ele é “japonês,” e pode ficar no país por tempo indefinido, pelo resto da vida, ao que tudo indica.
O segundo fator é que ainda é usada a tal lista dos Burakumin no Japão. A lista feita no século XVII foi atualizada por detetives particulares, e, mais uma vez, foram consultados os registros de família. Mais de duzentas companhias japonesas compraram esta lista para poderem identificar os Burakumin e excluí-los dos empregos. Segundo algumas fontes, também famílias compram esta lista ou contratam estes detetives para pesquisar a origem dos namorados das filhas e das namoradas dos filhos. [2]
Então, uma prática tão antiga como esta de separar uma classe de pessoas e fazê-la assumir a posição mais inferior na escala social ainda permanece no Japão do século XXI. É preciso esclarecer que uma medida oficial foi tomada: o governo japonês declarou, em 1871, no Edito de Emancipação Meiji (Ordem número 61), que abolia os o status oficial dos Burakumin e os re-nomeava shin heimin (novas pessoas comuns). Mas esta medida não foi acompanhada por nenhuma ajuda financeira ou educacional, e não houve nenhuma mudança na maneira que as religiões shinto-budistas encaravam os membros do grupo de “novas pessoas comuns.” Isto significou que os Burakumin continuaram sofrendo discriminação, não podendo participar livremente de atividades religiosas, ocupando os níveis mais pobres da sociedade. A maioria não freqüentava escolas, e portanto não aprendia a ler nem escrever, e isso perpetuava sua situação de subalternidade.
No começo do século XX, o movimento para a libertação dos Burakumin começou, influenciado por movimentos semelhantes na Coréia e na Rússia. Mas, com o início da segunda guerra mundial, os membros da comunidades Burakumin voltaram à estaca zero, e passaram a sofrer talvez ainda mais discriminação que antes, porque haviam ousado expressar-se. Depois da guerra, com o Japão destroçado, outra vez sofreram os Burakumin, que além da miséria que todos sofriam, tinham ainda que enfrentar a discriminação facilitada pela infame lista que os impedia de conseguir melhores empregos. Muitos deles tentaram e conseguiram sair da comunidade, e até hoje tentam esconder sua origem.
Frisando o que já deve estar claro: não há nenhuma razão física, emocional, racial, mental, ou cultural para a discriminação contra os Burakumin. O que os destaca é o fato de que seus antepassados eram forçados a lidar com animais e preparar cadáveres, e eles tinham que além de tudo pagar impostos mais altos que todos os demais japoneses. Ainda hoje, os Burakumin estão geralmente empregados em empresas de processamento de carne, e são das pessoas mais pobres do Japão. E, também ainda hoje, muitas crianças Burakumin são molestadas por colegas na escola, e chamadas de nomes relacionados a animais.
É importante realçar, entretanto, que alguns dos artistas mais importantes da história do Japão foram — e são — Burakumin. Entre eles, houve vários artistas e criadores do teatro noh, assim como de kabuki, e de kyogen. Entre os escritores, sempre se menciona Mishima (autor de, entre outros, O templo do pavilhão dourado, traduzido ao inglês como The Temple of the Golden Pavillion), e atualmente Kenji Nakagami, que faz questão que se saiba que ele é Burakumin. Mas Nakagami é uma exceção. A maioria dos Burakumin não podem se dar ao luxo de exibirem a marca da discriminação, pela simples razão que, se fizerem isso, perdem emprego, e a possibilidade de se casarem com pessoas de for a do grupo.
Voltando à história do meu jantar com minhas colegas da faculdade: depois de passado o primeiro choque causado pelo meu interesse pelo assunto, elas tentaram me convencer (enquanto falavam bem baixinho e olhavam pra ver se das mesas vizinhas ninguém estava nos escutando) que, mesmo na nossa universidade, há professores “desta classe.” Quem são eles? eu perguntei. Elas não puderam responder. Como vocês sabem que eles são Burakumin, se eles são iguais a todos os demais japoneses? Elas também não souberam responder. Talvez, numa cultura que abomina todo o que é diferente, esta existência às vezes fantásmica dos Burakumin funciona como uma forma de controle social. A classe seria, então, como o abismo do qual todos, mesmos os que vêm dela, fogem horrorizados, mas ao qual todos retornam, como que hipnotizados, afinal, ninguém pode ter certeza absoluta, mesmo com a famosa lista. Quando eu saí do restaurante com as colegas, eu fiquei imaginando se uma delas é Burakumin. Talvez elas estivessem pensando o mesmo uma da outra. Quem sabe até de mim? Embora eu seja claramente “gaijin”—estrangeira—nunca se sabe. . .
Este pensamento me fez lembrar do brilhante filme “Blade Runner,” em que há, além dos seres humanos, uma classe de gente “sintética,” os “replicants,” que foram criados para trabalhar em lugares perigosos na galáxia, e agora estão querendo voltar à Terra. Eles têm sentimentos, memórias, e o mesmo corpo físico que todos os humanos: é quase impossível saber com certeza quem eles são. Na última cena do filme, um dos detetives representado por Edward James Olmos se volta para o personagem representado por Harrison Ford. Este último se apaixonou por uma mulher lindíssima, e descobriu que ela é uma replicant. Os replicants morrem logo. Os replicants estão sendo eliminados, por ordem do governo. Harrison Ford sabe disso. Ela pode morrer a qualquer momento. E ele está arriscando tudo pra ficar com ela, mesmo que seja contra a lei. O companheiro detetive entende. Olves se volta para Harrison Ford e diz, referindo-se à mulher, “É uma pena que ela não vai durar.” E remata, “Mas, afinal, quem vai?” Transpondo este momento para a situação dos Burakumin do Japão, podemos dizer sobre qualquer pessoa aqui, “É uma pena que ela seja Burakumin.” Mas, afinal de contas, no fundo, no fundo, quem não é?
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NOTAS
* Professora de Espanhol e English Communication na Mukogawa Women's University, em Nishinomiya, no Japao; autora de Mazzaropi, o artista do povo - EDUEM, 2000
[1] Como este assunto é pouco conhecido no Brasil, aproveito a oportunidade para sugerir alguns títulos aos que se interessam e querem saber mais. Recomendo especialmente George DeVos e Hiroshi Wagatsumo, Japan’s Invisible Race: Caste in Culture and Personality (Berkeley: University of California Press, 1966), Michael Weiner, ed., Japan’s Minorities; The Illusion of Homogeneity (London/New York: Routledge, 1997), Jean-François Sabouret, L’Autre Japon, les burakumin (Paris: La Descouverte/Maspers, 1983), Suehiro Kitaguchi, An Introduction to the Buraku Issue; Questions and Answers ( Richmond, Surrey; Curzon, 1999), e The Reality of Buraku Discrimination in Japan (Osaka; Buraku Liberation Research Institute Publications, 1994).
[2] Além dos Burakumin, as famílias também não admitem que os filhos e filhas se casem com coreanos ou chineses—cujas famílias muitas vezes estão no Japão há muitas gerações, mas ainda não têm a cidadania japonesa, diga-se de passagem. O mero nascer no Japão não faz ninguém japonês, daí a importância dos registros de família (como o sabem os descendentes de japoneses que puderam reclamar a sua “cidadania” porque os nomes de suas famílias constam aqui no Japão).
EVA PAULINO BUENO